terça-feira, 29 de novembro de 2011




Um dos momentos mais frios no neo-realismo de O Conto do Vigário (1955), de Felllini, prende-se com a cena em que Augusto é interpelado por um homem a quem burlou e de quem estava fugido há já muito tempo. É que esse momento, que culminará com Augusto, preso, a ser arrastado pela polícia diante da inocência incrédula de Patrizia (v. fotograma abaixo), a sua pequena filha, ocorre num local muito particular: numa sala de cinema. Não é na rua, num café, em casa ou noutro sítio qualquer; é numa sala de cinema, na qual Augusto se preparava para ver um filme com a sua filha numa tarde bem passada entre pai e filha (que, até então, haviam estado separados).
O lugar que é a sala de cinema consubstancia, justamente, a tal frieza, ou, de outra perspectiva, o pragmatismo de que falo no início: num tom profundamente pessimista, sem concessões do tipo "tudo está bem quando acaba bem", Fellini não poupa no realismo e no trágico da vida: nem no cinema, lugar de escapismo, fantasia e transgressão, ou, mais genericamente, na Arte, enquanto meio de evasão do real em direcção ao Belo, a uma existência superior, os homens podem encontrar a felicidade, ainda que por breves momentos. A ida ao cinema deste pai e filha funciona como uma pequena e momentânea ilusão de tranquilidade, de "normalidade" (irremediavelmente desfeita, no entanto, dada a separação entre pai e mãe), que, não obstante, não passará apenas disso mesmo, já que esse momento pacificador será abruptamente cortado, trucidado, com a dureza da vida real, no mesmíssimo momento que a pequena Patrizia saboreia descontraidamente - infantilmente, diria, como sugestão da infância esmagada pelo mundo dos adultos - um gelado. Augusto é avistado por uma das suas vítimas (a única, note-se bem, que não aparece no filme como sendo pobre), sendo levado para a prisão. Nem num local, portanto, de imaginação, como é o cinema - onde nós, espectadores (segundos espectadores, no sentido em que Augusto e Patrizia eram também, naquele momento, espectadores), podíamos imaginar (acreditar) num desfecho feliz para aquela relação - o sonho leva a melhor. Pelo contrário, o real - o fatalismo, o destino - subsiste; a fantasia sai derrotada.



Acresce ainda uma estrutura dramática e narrativa tripartida (muito cara ao realismo poético francês dos anos 30), a qual potencia a curva, primeiramente ascendente, e depois descendente, de optimismo neste filme. De início, Fellini filma a vida de três burlões, que, através de artimanhas bem esgalhadas, burlam tudo e todos (mas burlam só os mais pobres, o que é, novamente, um traço desolador deste neo-realismo puro e duro: a pobreza é tanta que os pobres roubam os pobres). Nesta primeira fase, digamos, Augusto é apresentado como um homem que, devido à sua vida marginal, terá perdido a mulher e, por arrasto, a filha, mergulhando num estado de melancolia permanente (veja-se a cena, de uma enorme candura, em que Augusto encontra, por acaso, a filha à saida da escola). Num segundo momento, ilumina-se uma esperança: é, preciamente, quando Augusto decide retomar a sua relação com a filha, passando o dia com ela e oferecendo-lhe um bonito relógio. É então que, neste mesmo dia - e chegamos a um terceiro e derradeiro momento - que essa vaga de esperança, de felicidade, se desvanece, e a realidade, trágica e dura, assume novamente o seu curso inexorável - Augusto é preso e separa-se, uma vez mais, da filha. E quando sai da prisão, então aí sim, a desgraça abate-se impiedosamente, numa cena dolorosa e difícil de digerir.

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