sábado, 25 de abril de 2015

harmonia



"O carácter intuitivo e sensível do cinema de Oliveira impede-o sempre de cair na alegoria ou na simplificação. Adoptando o ponto de vista infantil, Oliveira não deixa, no entanto, de sentir que a presença exterior do mundo e dos valores «adultos», se age como condicionadores da natural vontade de liberdade das crianças, as protege ao mesmo tempo dos riscos de tal liberdade. Talvez ao homem, mesmo ao homem infantil natural, não seja dado ser, de modo absoluto, livre, talvez ele possa afogar-se na sede de absoluto, talvez liberdade e necessidade sejam, afinal, uma mesma única e íntima coisa. «Abre a porta da escola / sai o pardal da gaiola», canta um cantor de rua em Aniki-Bóbó; talvez, quem sabe?, a liberdade do pardal precise, de algum desalentado modo, das grades e da sua protecção.
É ainda, provavelmente, a intuição metafísica de Oliveira que faz com que (...) seja um testemunho adulto, o do lojista, quem protege as crianças do precipitado juízo acerca da culpa de Carlitos e este da dolorosa injustiça de tal juízo. Como, por fim, parece relevar de idêntica intuição a harmonia final do amor de Carlitos e de Teresinha, e deste com o mundo: a boneca torna-se finalmente o instrumento de felicidade quando - devolvida ao legítimo dono e, depois, por ele oferecida - é obtida, não pela transgressão, mas de acordo com a normal social. Essa harmonia resulta, pois - apesar da cúmplice simpatia que Oliveira manifesta sempre para com a rebeldia transgressiva das suas pequenas personagens - da reconciliação, também, do universo absoluto da infância e da sociedade relativa dos homens".

Manuel António Pina, Aniki-Bóbó, Assírio & Alvim, 2012, pp. 35-36.

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